Tempo de recordar… e restaurar
No dia 11 novembro comemora-se o Dia do Armistício: o final oficial da I Guerra Mundial. Em diversas partes do mundo, este dia é chamado Dia da Recordação, ou Dia dos Veteranos, quando os horrores e os sacrifícios de duas guerras mundiais e outros conflitos são lembrados. Em 2016, visitei as sepulturas de guerra da Commonwealth em Tyne Cot e Ypres, onde dezenas de milhares de homens estão listados ou enterrados, a maioria em sepulturas não marcadas – “conhecidos apenas por Deus”. Ouvimos que todos os anos, um século após as batalhas que tiveram lugar naquela área, os agricultores locais ainda descobrem ali restos humanos e toneladas de artilharia.
Apesar da beleza ordenada e do cuidado carinhoso que se pode observar no cemitério em um dia ensolarado de outono e a recriação perfeita, tijolo por tijolo, de Ypres pré-guerra, senti ali uma atmosfera pesada e muito triste. Pareceu-me mais do que a memória coletiva. As fileiras de lápides brancas, os ônibus cheios de escolares visitantes, o fato de que a economia local depende do turismo de guerra (“compre seus chocolates belgas de lembrança aqui!”; “turismo em vans da Over the Top Tours”) tudo isso é percebido pelo visitante, mas a coisa vai mais fundo. Como sugere o romance de Sebastian Faulks O canto dos pássaros, a própria natureza parece reagir aos horrores do derramamento de sangue e da guerra.
Os cristãos bíblicos não devem surpreender-se com isso. Depois que Caim assassina Abel, a voz do sangue de seu irmão clama a Deus do chão, e a terra se torna menos frutífera (Gênesis 4:10–12). Jó conclui seu discurso final dirigido a Deus dizendo:
«Se a minha terra se queixar de mim e todos os seus sulcos chorarem,
se consumi os seus produtos sem nada pagar,
ou se causei desânimo aos seus ocupantes,
que me venham espinhos em lugar de trigo
e ervas daninhas em lugar de cevada.» (Jó 31:38–40)
Jó reconhece o pacto que reune as pessoas, Deus e a terra. O solo, juntamente com as plantas e criaturas que a habitam, não é uma entidade inanimada, mas uma parte intrínseca da comunidade da criação. Desde o Iluminismo, com seu cientificismo e racionalismo, nós nos vimos como separados da natureza; sujeitos que lidam com objetos. Isso nos permitiu analisar, dominar e explorar… mas a que custo? Precisamos recuperar o que Aldo Leopold chamou de “ética da terra”. É o que a maioria das culturas tradicionais sempre soube – e os estudos ecológicos revelam – que tudo está conectado em um nível muito profundo. É o que Oséias articulou quando escreveu que quando “o derramamento de sangue é constante … a terra pranteia”, e os animais, aves e peixes também sofrem (Oséias 4:1–3).
Assim, ao que parece, os lugares têm memórias e podem conter a história do que aconteceu ali. O derramamento de sangue inocente deixa uma maldição sobre o solo. As cidades podem ter um caráter particular em relação à sua história militar, política e religiosa (Apocalipse 2–3). Lugares nos quais se orou durante séculos, quer sejam igrejas ou ilhas, podem ter uma atmosfera de paz e da presença de Deus: “lugares transparentes”, onde o fino véu que oculta a presença de Deus praticamente desaparece.
No entanto, não é um caso simples de lugares “bons” ou “maus”. Não é preciso sermos fatalistas a respeito disso. Maldições podem ser quebradas. Histórias que guardam feridas podem ser restauradas. [Este assunto é coberto de forma brilhante por Russ Parker em Healing Wounded History: Reconciling Peoples and Healing Places (História Ferida: Reconciliando Povos e Curando Locais). Londres, 2001: Dartn, Longman and Todd.] A Bíblia fala da cura da terra quando as pessoas se arrependem e retornam a Deus (2 Crônicas 7:14). Nesta tempo de recordações, quando velhas batalhas são trazidas à mente ao mesmo tempo que sangue fresco é derramado sobre o solo da Síria, Iraque e de outros lugares, lembro-me do trabalho de A Rocha ao longo de muitos anos no vale de Bekaa, um dos lugares mais devastados pela guerra no mundo, restaurando um oásis para a vida selvagem e um local de encontro para pessoas diversas, e também me lembro da promessa de Deus em tempos de guerra e injustiça:
«A fortaleza será abandonada,
a cidade barulhenta ficará deserta,
a cidadela e a torre das sentinelas
se tornarão covis,
uma delícia para os jumentos,
uma pastagem para os rebanhos,
até que sobre nós o Espírito
seja derramado do alto,
e o deserto se transforme em campo fértil,
e o campo fértil pareça uma floresta.
A justiça habitará no deserto,
e a retidão viverá no campo fértil.
O fruto da justiça será paz;
o resultado da justiça será tranqüilidade
e confiança para sempre.
O meu povo viverá em locais pacíficos,
em casas seguras,
em tranqüilos lugares de descanso,
mesmo que a saraiva arrase a floresta
e a cidade seja nivelada ao pó.
Como vocês serão felizes,
semeando perto das águas,
e deixando soltos os bois e os jumentos!» (Isaías 32:14–20)
Pessoas: nós as lembraremos.
Lugares: podemos cooperar com Deus para restaurá-los.
Tradução: Elisa Gusmão
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