Rei Davi – poeta ecológico
Davi foi um homem de contrastes, e por vezes de contradições: um menino pastor de ovelhas e um rei poderoso; guerreiro valente e poeta sensível; santo, pecador e compositor. Sugiro acrescentar a esta lista um poeta da natureza e teólogo ecologista. Embora exista muita discussão doutrinária sobre a autoria davídica dos Salmos, faço uso da linha canônica, trabalhando com a hipótese (tanto do Antigo como do Novo Testamento) de que os 73 Salmos creditados a Davi, e possivelmente alguns daqueles não atribuídos a ele, foram de sua própria autoria ou de uma “escola davídica” que refletia seus pontos de vista.
Algo marcante dos Salmos atribuídos a Davi é a referência que eles fazem à natureza. Eis alguns:
Salmo 8 – Os dois trechos principais contrastam a insignificância cósmica dos seres humanos (v. 2-4) à grandiosa escolha de Deus pela humanidade para cuidar da criação (v. 5-8). Entre eles encontramos as declarações da majestade de Deus através da criação (v. 1,9). É um Salmo bem atual, quando telescópios e satélites espaciais reforçam quão pequenos somos e ainda a física atmosférica e a biologia conservacionista permanecem nos lembrando de que estamos destruindo o único planeta que conhecemos com vida sustentável. Quando verdadeiramente adoraremos a Deus ao permitir que a criação floresça em toda sua diversidade?
Salmo 19 – As falas de Deus na criação (v. 1–6) e na revelação através das Escrituras (v. 7–11). Ambas são necessárias para se entender quem Deus é, a reverência e deslumbramento pela inspiração da criação, a sabedoria, alegria e esclarecimento trazidos pelas Escrituras.
Salmo 24:1 – “Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe, o mundo e os que nele vivem; …”. O rei Davi proclama que o mundo não pertence aos reis ou às nações (e hoje poderíamos acrescentar, às corporações multinacionais). Tudo o que nele há pertence a Deus – os direitos sobre os minérios, a água, o solo, o ar, cada animal, planta e ser humano. É uma declaração profundamente política e econômica, radicalmente diferente dos valores da atualidade. Temos a coragem de viver por eles?
Salmo 36:5–6 – A perfeição e a justiça de Deus, como por exemplo os céus, montanhas e oceanos surpreendentes, levaram-no a cuidar de forma a proteger tanto “pessoas como animais”. Não é uma possibilidade ou escolha: desenvolvimento ou conservação. Se Deus é capaz de cuidar de ambos, então nós também podemos.
Salmo 42 – O rei-pastor, que aprendeu a respeito de Deus e da natureza no deserto de um terreno semiárido, compara um cervo sedento, talvez perseguido por caçadores, a alguém com sede espiritual, ávido por querer mais de Deus.
Salmo 65 – A provisão de Deus na criação, incluindo o cuidado com a terra (9) e com a bênção da chuva (v. 9,10), possibilitando prados e vales a exclamar e cantar.
Salmo 145:9 – “O Senhor é bom para todos; a sua compaixão alcança todas as suas criaturas”. Mais uma vez o salmista declara a bondade de Deus para com toda a criação e sua compaixão e misericórdia amorosas pelos seres humanos junto com todas as demais obras da criação.
A omissão flagrante desta lista é o Salmo 104, o poema da natureza mais bonito e completo dentre os Salmos e, muito provavelmente, em toda a literatura antiga. Fica de fora apenas pelo fato de não ser atribuído a Davi. Contudo parece ser a continuidade, em linguagem e estilo, do Salmo 103 (creditado a Davi) e, de forma mais significativa resgata, nos outros Salmos de Davi, os temas da natureza. Enquanto o Salmo 103 louva a Deus por seus atos na história e por sua compaixão pelas pessoas, no Salmo 104 as pessoas são apenas alguns dentre os muitos destinatários do amor e cuidado de Deus. Mesmo os leões, que Davi caça na mocidade e que na sua cultura podem ser vistos como ameaça, buscam em Deus o alimento como provisão (v. 21–22). A noite pertence a eles da mesma forma que o dia pertence às pessoas e a outros animais.
Os Salmos davídicos não são contemplações urbanas românticas nem uma espiritualidade ecológica do tipo “abraça árvore”. São o resultado de uma fé madura em Deus, baseada nas Escrituras, na experiência e na natureza. Deus é Criador, Sustentador e Salvador não apenas de pessoas mas de todas as criaturas. Os Salmos trazem um equilíbrio entre uma fé que é intensamente pessoal, maravilhando-se pela maneira como Deus nos forma no útero materno (Salmo 139), nos ama e nos perdoa a despeito de nossas falhas e inconstâncias (Salmo 51) e a ciência de que a vontade de Deus é muito maior do que nossas preocupações individualistas e abrangem a criação como um todo. A igreja precisa de mais músicas e de poemas como estes.
Tradução: Ana Luisa Barreiros
Gostamos que nossos blogs sejam usados por terceiros desde que o autor seja citado e que A Rocha Internacional, arocha.org, seja citada como a fonte original. Agradecemos que nos informe se você usou nosso material, enviando um e-mail para [email protected].