Noé – muito além do sucesso de bilheteria
Noé esteve no noticiário recentemente. O filme epônimo* de Darren Aronofsky gerou controvérsia e discussão ao brincar, de forma deliberada, com a narrativa bíblica. A crítica, em sua maioria, amou o filme enquanto os espectadores mostraram-se divididos. (Rotten Tomatoes apresenta uma avaliação positiva por parte de 77% da crítica e de 46% do público em geral). Sabendo que Noé seria a próxima figura a ser abordada na série sobre eco-heróis bíblicos, julguei que devia ir assistir ao filme!
Fiquei surpreso. De acordo com o que havia lido, esperava um blockbuster hollywoodiano superficial com animais criados em computação gráfica, monstros de pedra e cenas de batalha épica de gente com espadas nas mãos e sandálias nos pés, ao estilo Transformers encontram O Senhor dos Anéis, não Cecil B. DeMille. Tudo isso encontramos lá e ainda mais: é fácil criticar o filme pela produção antibíblica desnecessária que apresenta – romance, rivalidade entre irmãos, sangue, violência e magia. Há ainda uma cinematografia imaginária e bela – sem esquecer o fato de que Noé conta novamente o relato da criação do livro de Gênesis à sua família. Mais importante que isso, Aronofsky enfrenta questões teológicas profundas e intrigantes: Por que um mundo que o Criador fez tão belo e bom tornou-se tão catastrófico? Que parte os humanos continuam tendo na sua destruição leviana? E será que ainda podemos ser parte da solução?
Contudo, por fim, o filme Noé não atende às expectativas por três razões. Em primeiro lugar, os animais são uma total decepção. Embora seja louvável o fato de o filme desejar não ferir qualquer criatura vivente, o resultado de computação gráfica dos exemplares de animais é irreal, não factível e incapaz de evocar interesse – invenções tipo pushmepullyou** generalizadas, de imaginação digital míope e não de criaturas magníficas, misteriosas e realistas que de fato povoaram a terra.
Em segundo lugar, “Noé” cria uma escolha falsa. De um lado, os animais, inocentes e carentes de proteção. Do outro, os seres humanos, escravos da dominação tecnológica, dos desejos da carne e de inúmeros outros pecados mortalmente diversificados. O pobre Noé é largado sem uma possibilidade de escolha. Se o mundo deve ser purificado e os animais salvos então ele mesmo e sua família deverão finalmente morrer ou até serem mortos por ele. A mensagem é clara no sentido de que a única possibilidade de um mundo bom é aquele sem seres humanos. Desta forma, sou então, de forma atípica, obrigado a concordar com Glenn Beck de que o filme é ‘fortemente anti-humano’. Não imagino que tenha sido essa a intenção de Aronofsky, como o final melado sugere, mas essa é a lógica de sua forma de contar a estória.
Em terceiro lugar, e mais revelador, o filme coloca na berlinda o personagem chave do drama bíblico. Deus é citado simplesmente como “o Criador”, um ser poderoso mas que não se dá a conhecer, cujas criaturas lutam para compreender Seus propósitos. A escolha de Aronofsky fica entre um mundo antropocêntrico (ou egocêntrico) – construído com base no progresso e ambição humanos – e um mundo ecocêntrico, onde os seres humanos são secundários ou extintos, mas há uma terceira possibilidade. O relato bíblico de Noé apresenta uma visão de mundo radicalmente teocêntrica.
Deus não é apenas o Criador, mas alguém pessoal e intimamente envolvido na vida de todas as criaturas – humanos e não humanos. Os bons propósitos de Deus vão muito além dos mesquinhos interesses humanos. A arca da salvação abrange cada espécie – 14 de algumas, e 2 de outras, com apenas 8 seres humanos. O Deus bíblico é, portanto, passional com relação à conservação da biodiversidade e não apenas quanto a fornecer a Noé uma dieta variada ou um jardim zoológico flutuante mas pelo fato de que todas essas criaturas têm profunda importância para Ele. Devem ser mantidos vivos simplesmente, «para que sua espécie possa permanecer sobre a terra». O relato bíblico, no entanto, derruba o mito de que Deus apenas se importa em salvar almas ou então apenas em salvar pessoas. Embora isso também não as torne seres sem importância. Deus escolhe Noé e, no ápice da estória bíblica, a aliança com Deus expressa através do arco-íris inclui pessoas, todas as outras criaturas e ainda a terra propriamente dita. E isto é muito mais satisfatório do que a conclusão de Noé o filme. Deus está comprometido com o projeto iniciado em Gênesis 1 e os humanos são parte daquele projeto – chamados, apesar de falhas e defeitos, para a proteção e serviço das nossas espécies irmãs.
Finalmente, sou grato a Darren Aronofsky por Noé pelo fato de ter-me feito pensar e de olhar novamente para a estória bíblica que tendemos a relegar à Escola Dominical. Ela é de fato um conto dos tempos atuais (ainda mais sem os extras desnecessários que o filme traz) porque aponta para um Deus que se importa com todas as criaturas e nos chama para também fazer o mesmo. E essa é a questão. A última palavra pertence, devidamente, a Darren Aronofsky: «Tentar excluir uma mensagem ambiental da estória de Noé é um trabalho de edição maior do que enfatizá-lo… Há claramente uma mensagem ecológica nela.»
* Diz-se do que entrega ou empresta o seu nome a alguma coisa
** Pushmepullyou: é um animal fictício com duas cabeças, uma de cada lado do corpo. O nome é um trocadilho entre “Push me, pull you” que, numa tradução livre, significa me empurra que te puxo.
Tradução: Ana Luisa Barreiros / Billy Viveiros
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