Cartões Postais do Oriente Médio, por Chris Naylor: 2. Hospitalidade beduína
1996–98 Vale de Bekaa, Líbano
A cabana era escura porém quente por dentro; uma luz tremulante vinha de um simples fogão a lenha. O café quente e amargo estava num elaborado pote de bronze. Abu Nizar era o pai orgulhoso de três meninos e quatro meninas. A maior parte do ano eles viviam em Homs, na Síria, mas a cada primavera, e algumas vezes no outono, pegavam sua cabana e faziam a trilha para Bekaa procurando trabalho extra. Ele havia trazido apenas os cinco mais novos com ele neste ano. Nizar, seu filho mais velho, estava estudando engenharia na universidade, na Síria, e seu irmão mais novo fazia serviço militar compulsório. Abu Nizar não tinha certeza de onde – provavelmente aqui no Líbano.
Conversávamos sobre a zona úmida. A família amava vir pra cá na primavera. O trabalho era bom mas eles também amavam o ar limpo e fresco, as montanhas e a exuberante grama para o seu rebanho. Mas não gostavam de vir no outono. Abu Nizar explicou que desde que a guerra começara, rebanhos de cabras e bodes fortes, aos milhares, desceriam a este último oásis verde em uma região ressequida pelo longo, quente e seco verão. Tudo seria devorado ou pisoteado por uma legião de cascos fendidos. As longas poças secas, drenadas pelas bombas d’água para irrigar os campos, seriam taças poeirentas clamando pelas chuvas de inverno. Eu agradeci meu gracioso anfitrião pelo café e segui uma das inúmeras trilhas deixadas pelos bodes, saindo da barraca de volta para as fontes, a origem dos pântanos. Usando o pavimento de calcário como degraus em volta e acima das borbulhantes fontes, encontrei mini fontes alimentando uma longa e estreita piscina, um reservatório temporário na jornada do fluxo de água que adentrava a zona úmida propriamente dita. Uma eclusa, há muito quebrada, era testemunha dos dias longínguos de controle da água. Apesar do abandono, o rio canalizado ainda levava muita água para o leste abaixo de uma avenida de plátanos, muitos quebrados ou faltando, como numa fila de dentes negligenciada.
Não havia sido um início promissor. Encontrei uma pedra confortável e sentei esperando para ver se o crepúsculo traria aves empoleiradas. Diferentemente do piquenique no verão havia poucos pássaros ao longo da tarde. Registrei em meu caderninho apenas algumas espécies, cartaxos e piscos-de-peito-azul estendendo a invernada, os migrantes adiantados rouxinóis, abibes comuns e carquejas. Talvez fosse pela escassez de pássaros mas não tinha encontrado nenhum caçador, apesar dos sons de tiro não estarem longe. Mas enquanto sentava observando a agora cinza e enrugada água, os sons de caça e o carro passando ocasionalmente na estrada atrás foram afogados pela cacofonia de coaxos de mil rãs.
Inesperadamente sons de fazenda cortaram pelos chamados de acasalamento dos anfíbios. Esperando ver gansos perto das tendas beduínas, logo percebi que a buzina estava sobre mim e era um bando de centenas de grous que voou poucos metros acima de minha cabeça. Enquanto escrevia os números em meu caderninho, minha atenção foi imediatamente focada em um grupo de doze pelicanos, num vôo raso descendente, uma contradição de elegância e corpulência, pousando silenciosamente na água. Enquanto o crepúsculo de inverno apagava vagarosamente a zona úmida, outros bandos chegavam nos poleiros; mais ou menos 1,5 quilômetro ao leste provavelmente outros 200 grous, e talvez mais quinze pelicanos bem adiante do primeiro bando. Trinta cegonhas, provavelmente brancas mas talvez com algumas pretas entre elas, pousaram ali perto. Logo na frente das árvores o esplendor solitário de uma águia-gritadeira batendo suas asas vagarosamente ficou visível por uns instantes até desaparecer na escuridão.
E então foi um som muito diferente que atravessou a noite tranquila. Atrás da avenida um bando de balas cuspiu fogo em staccato, com o som característico de metralhadoras cortando pelo mais recente bando de cegonhas brancas que tentava pousar no poleiro dos juncos. Formas pesadas tombavam do céu mas a maioria do bando arremeteu em uníssono e com uma graça extraordinária acendeu acima da carnificina, adentrando a névoa que se desenrolava do leste. Mais estouros das AK-47 esquadrinhavam a névoa e os juncos enquanto os caçadores ocultos perceberam que espantaram a maior parte de sua caçada. Quando a raiva cresceu dentro de mim, soube que era a hora de ir embora. Este não era um local seguro para se estar. Então, gritando para alertar aos caçadores que empunhavam suas metralhadoras que não havia somente aves nos pântanos, corri para o carro, em tempo de ver figuras melancólicas cortando fora as asas das cegonhas mortas e carregando seus cadáveres ensanguentados na traseira de um jipe de aparência militar.
Enquanto dirigia para casa em choque, percebi que a zona úmida de Aammiq era uma metáfora do Líbano como um todo; belíssima, acolhedora e hospitaleira, com vida superabundante que poderia ser extinta pelo puxar de um gatilho.
Este é o segundo de seis excertos de “Cartões Postais do Oriente Médio”, por Chris Naylor. Publicado por Lion Hudson em março de 2015, pode ser adquirido de sua página no site de Lion Hudson.
Tradução: Sabrina Visigalli do Rosário / Vinicius Gripp B. Ramos
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