17 novembro 2020 | Richard Bauckham | 0 comentários

Confinamento, Gênesis e nossa necessidade da Natureza

Você se lembra das primeiras semanas de confinamento, da «grande pausa» quando quase não havia tráfego ou ruído humano? Dando um passeio por uma estrada normalmente movimentada, eu me sentia como se tivesse viajado no tempo para os dias em que não havia carros.

O que todos comentavam naquela época era o canto dos pássaros. O canto se ouvia muito mais vezes, e muito mais alto. As pessoas discutiam por que isso era assim: será que os pássaros cantavam mais alto? Ou eles estavam se mudando para nossos jardins, agora que os humanos não estavam por perto? Ou era apenas que estávamos ouvindo melhor sem todo o barulho humano? Recentemente li que a pesquisa revelou que, sim, estávamos ouvindo melhor… mas os pássaros na verdade estavam cantando mais suavemente. Para se fazerem ouvir para outras aves, eles não precisavam cantar tão alto. Mas a ausência de barulho de trânsito também nos permitiu ouvi-los melhor.

Entre todas as dificuldades e isolamento do confinamento, muitas pessoas relataram sentir-se mais próximas do mundo natural. Mesmo as pessoas sem jardim e que viviam longe do campo iam ao parque para seus exercícios diários e se deliciavam com os espaços verdes e o canto das aves. As pessoas descobriram que a natureza é reconfortante e curativa. Sabemos disso instintivamente, mas o confinamento deu a muitas pessoas uma nova consciência disso mesmo. Precisamos das outras criaturas que compartilham nosso mundo – não apenas por razões utilitárias, mas porque, em algum sentido muito profundo, nós pertencemos a elas. Não podemos ser nós mesmos sem as outras criaturas.
Poderíamos ter aprendido isso com Gênesis. Quando Deus criou Adão do pó da terra, a primeira coisa que ele fez a seguir foi plantar um pomar para Adão ali viver. Não um jardim todo arrumadinho, mas uma mata com muitas árvores de fruto, das quais Adão poderia comer. Gênesis diz: «toda a árvore agradável à vista, e boa para comida». As árvores eram para nos alimentar, mas também para nos deliciar com sua beleza. Deus quis que os humanos vivessem com as árvores. Hoje sabemos que a vida neste planeta não poderia sobreviver sem árvores que absorvem dióxido de carbono e proporcionam ambientes para grande número de espécies. As árvores são nossos melhores amigos.

Mas durante séculos as temos cortado, arrasando as florestas para dar lugar à agricultura. Tornamo-nos tão bons na destruição que estamos desmatando o planeta em uma escala épica. Só muito tarde despertamos para nossa necessidade vital de árvores e começamos algum reflorestamento. Mas isso não consegue competir com a destruição diária das florestas tropicais ou com os incêndios florestais que arrasam em uma escala sem precedentes as florestas na Austrália e na Califórnia, e – acreditem ou não – na Sibéria.

Após isso, Deus criou os animais. Esta história tem dois lados. De um ponto de vista, a mensagem é que os animais não poderiam fornecer o companheiro que Adão precisava: um parceiro de sua própria espécie. Adão precisava de uma Eva. Ou Eva precisava de um Adão: não é uma história que privilegia o lado masculino. Você poderia contá-la ao contrário, se quisesse: Deus cria Eva primeiro e logo ela precisa de um Adão. Seja como for, os humanos precisam de outros seres humanos.

Mas o outro lado da história é este: Adão dá nomes a todos os animais. Alguns dos comentários bíblicos dizem que isso é uma afirmação da autoridade, ou do domínio, de Adão sobre os animais. Mas não há provas para isso. Quando os cientistas descobrem uma espécie desconhecida e lhe dão um nome científico, eles não estão afirmando domínio sobre ela. Eles estão lhe dando reconhecimento, dando-lhe um lugar em nosso mapa humano do mundo. Quando os pais dão o nome a uma criança, não estão afirmando autoridade sobre ela. Eles estão reconhecendo essa criança como uma pessoa que precisa de um nome pelo qual será conhecida no mundo humano. Assim, Adão, o primeiro taxonomista, reconhece todas as outras espécies que têm um lugar em seu mundo.

Barbara Jones, «Adam dando nome aos animais» (mural)

Barbara Jones, Adam dando nome aos animais (mural)

Eu gosto dessa imagem de Barbara Jones porque Adão não está dominando os animais. Ele está olhando e pensando. Não devemos imaginar Adão dando nome aos animais em um processo rápido e arbitrário. Para dar nome a um animal, Adão precisa refletir sobre ele, conhecê-lo, pensar em um nome que lhe sirva. Ele está conhecendo seus vizinhos e amigos: todas as criaturas que Deus fez para viver com ele nessa mata tão bonita e cheia de vida. E dar-lhes um nome é certamente dar-lhes um lugar permanente no mundo que Adão conhece. Ele certamente não está esperando que eles se extingam tão cedo. Quando ele dá nome ao primeiro par de rinocerontes-brancos-do-norte, ele certamente ficaria chocado ao saber que muitos de nós terão visto recentemente em nossas telas de televisão os dois últimos animais dessa espécie, mãe e filha.

Se, durante o confinamento, nos encantamos em um sentido renovado de nossa conexão com o mundo natural, precisamos também saber que esse mundo natural está desaparecendo a um ritmo alarmante. Mundialmente, como todos sabemos agora, a taxa de extinção de espécies – plantas e animais – é assombrosa. Há uma taxa natural de extinção que acontece sem a intervenção humana, lentamente o suficiente para que novas espécies evoluam. Mas a taxa de extinção é agora pelo menos 100 vezes superior, e ainda está acelerando. Há um acrônimo útil que alguns conservacionistas usam para resumir as atividades humanas mais destrutivas que são responsáveis pela extinção em massa. É assim:

H para a destruição de Habitats, incluindo os efeitos da mudança climática
I para espécies Invasoras
P de Poluição
P para explosão Populacional
O por Óbvio excesso de consumo, incluindo a pesca excessiva [*]

Essas são as cinco maneiras pelas quais nós humanos estamos destruindo a criação de Deus, e a pior delas é a destruição de habitats. Das oito milhões de espécies, um milhão estão agora ameaçadas.

Podemos culpar outras pessoas, é claro. Podemos culpar a nova classe média da Ásia, que alimenta a expansão do tráfico internacional de animais selvagens, como o adorável pangolim. Como alguém poderia não querer que os pangolins sobrevivessem?  Podemos culpar as pessoas que usam o desmatamento como uma maneira rápida e fácil de ganhar dinheiro. Podemos culpar muitas outras pessoas – e elas têm efetivamente culpa. Mas este é um sistema do qual todos nós fazemos parte. Como podemos deixar de contribuir para isso?

Todos podemos dar pequenos passos, e todos precisamos pensar que passos serão esses para nós, em nossas próprias vidas. Talvez tenhamos dado alguns passos no passado e esteja na hora de pensar o que mais podemos fazer. O que Gênesis 2 nos diz é que não fomos feitos para sermos os destruidores da terra que agora somos. Fomos destinados a ser amigos das árvores. Fomos destinados a dar reconhecimento e espaço às outras espécies.

[*] Gostaria de deixar absolutamente claro que os hipopótamos não são de forma alguma responsáveis por nenhum desses efeitos.

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Categorias: Reflexões
Sobre Richard Bauckham

O professor Richard Bauckham é um estudioso e teólogo bíblico, cujo trabalho acadêmico abrangeu muitas áreas, particularmente a teologia do Novo Testamento e, mais recentemente, as abordagens bíblicas às questões ambientais. Escreveu, entre outros, os livros Bible and Ecology (2010) e Living with Other Creatures (2011). Até 2007 ele foi professor de Estudos do Novo Testamento na Universidade de St Andrews, Escócia, e se aposentou cedo (para Cambridge) a fim de se concentrar em pesquisa e escrita.

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